QUINTA
TURMA
PROCESSO:
REsp 1.640.084-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, por unanimidade, julgado em
15/12/2016, DJe 1/2/2017.
RAMO
DO DIREITO: DIREITO PENAL
TEMA:
Desacato. Incompatibilidade do tipo penal com a Convenção Americana de Direitos
Humanos. Controle de convencionalidade.
DESTAQUE
O
art. 331 do CP, que prevê a figura típica do desacato, é incompatível com o
art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, do qual a República Federativa do
Brasil é signatária.
INFORMAÇÕES
DO INTEIRO TEOR
O
art. 2º, c/c o art. 29, da Convenção Americana de Direitos Humanos prevê a
adoção, pelos Estados Partes, de "medidas legislativas ou de outra
natureza", visando à solução de antinomias normativas que possam suprimir
ou limitar o efetivo exercício de direitos e liberdades fundamentais. Na sessão
de 4/2/2009, a Corte Especial do STJ, ao julgar, pelo rito do art. 543-C do
CPC/1973, o REsp 914.253/SP adotou o entendimento firmado pelo STF no RE
466.343/SP, no sentido de que os tratados de direitos humanos, ratificados pelo
país, têm força supralegal, "o que significa dizer que toda lei antagônica
às normas emanadas de tratados internacionais sobre direitos humanos é
destituída de validade." Trata-se do controle de convencionalidade, cuja
finalidade é compatibilizar as normas internas com os tratados e convenções de
direitos humanos, nos termos de doutrina pioneira, no Brasil. Dessarte, ao
contrário do que entenderam as instâncias ordinárias, a ausência de lei
veiculadora de abolitio criminis não inibe a atuação do Poder Judiciário na
verificação de possível inconformidade do art. 331 do CP, que prevê a figura
típica do desacato, com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que
estipula mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão. A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou a respeito
do tema em casos que envolveram outros países, resultando, sempre, em decisões
pela prevalência do art. 13 do Pacto de São José sobre normas internas que
tipificam o crime em exame. No relatório
especial de 1995, a Comissão afirmou que as leis de desacato se prestam ao
abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo
establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do
Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e
igualitário (CIDH, Relatório sobre a compatibilidade entre as leis de desacato
e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA/Ser. L/V/II.88, doc. 9
rev., 17 de fevereiro de 1995, 197-212). A CIDH, em seu 108º período ordinário
de sessões, realizado de 16 a 27/10/2000, aprovou a Declaração de Princípios
sobre Liberdade de Expressão, que estatui: "11. Os funcionários públicos
estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a
manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas
como 'leis de desacato', atentam contra a liberdade de expressão e o direito à
informação." Ora, as recomendações da CIDH assumem força normativa
interna. A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem
jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob pena de negação
da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais nele
reconhecidos. Embora a jurisprudência afaste a tipicidade do desacato quando a
palavra ou o ato ofensivo resultar de reclamação ou crítica à atuação funcional
do agente público (RHC 9.615/RS, Quinta Turma, DJ 25/9/2000), o esforço
intelectual de discernir censura de insulto à dignidade da função exercida em
nome do Estado é por demais complexo, abrindo espaço para a imposição abusiva
do poder punitivo estatal. Não há dúvida de que a criminalização do desacato
está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado -
personificado em seus agentes - sobre o indivíduo. A existência de tal
normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade
entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de
Direito preconizado pela CF/88 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
Ademais, a punição do uso de linguagem e atitudes ofensivas contra agentes
estatais é medida capaz de fazer com que as pessoas se abstenham de usufruir do
direito à liberdade de expressão, por temor de sanções penais, sendo esta uma
das razões pelas quais a CIDH estabeleceu a recomendação de que os países
aderentes ao Pacto de São José abolissem suas respectivas leis de desacato.
Observe-se, por fim, que o afastamento da tipificação criminal do desacato não
impede a responsabilidade ulterior, civil ou até mesmo de outra figura típica
penal (calúnia, injúria, difamação etc.), pela ocorrência de abuso na expressão
verbal ou gestual ofensiva, utilizada perante o funcionário público.